por Gian Danton
Eu já expliquei aqui que história em quadrinhos de ficção não é
documentário. Ou seja: uma HQ não precisa ser realista, ela apenas
precisa convencer o leitor de sua realidade. Isso passa muito pela
caracterização visual dos personagens. Por exemplo, os cientistas não
costumam ser carecas, os malvados não costumam ser feios. Mas um bom
desenhista recorre a essa generalização para que o leitor identifique,
logo de cara, a função ou a personalidade dos personagens.
Basta olhar para
Ming e
Flash Gordon e perceber quem é o vilão e quem é o herói.
Marcos Rey, um dos grandes roteiristas brasileiros de cinema e TV lembra
a figura de
Sherlock Holmes, cuja caracterização, com cachimbo, lente
de aumento e sobretudo xadrez, o identifica imediatamente.
Claro que hoje as HQs hoje não trabalham tanto com clichês, mas mesmo
assim, desenhistas e roteiristas utilizam objetos, roupas e até
expressões ou gestos para caracterizar os personagens, já que os
quadrinhos são uma mídia visual.
Nos primeiros capítulos da nossa webcomic
tínhamos um personagem que aparecia em poucos quadrinhos. Ele era um
político avesso à tecnologia, que é contrário à Operação Salto Quântico e
que acaba sendo convencido pelo Garry Roland a apoiar o projeto. No meu
roteiro, coloquei que ele era alguém antiquado, temeroso de avanços
tecnológicos. Na hora de ilustrar a sequência, o desenhista Jean Okada
decidiu colocá-lo de óculos. Toda a caracterização psicológica do
personagem ficou explícita sem que precisassemos usar uma palavra.
Bastava bater o olho e o leitor percebia que aquele político era
contrário às inovações (até porque seu óculos era do tipo antigo).
Quando divulgava a série no Orkut, ainda no ano de 2008, encontrei um
suposto crítico de quadrinhos que implicou com o político de óculos e
com o fato dos Exploradores não usarem touquinha. De fato, nas missões na
NASA os astronautas usam uma touca e, por conta disso, esse suposto
crítico achava que também os Exploradores deveriam usar touquinha.
- Mas em
Jornada nas Estrelas eles não usam touquinha. - argumentei.
- Jornada nas estrelas é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar touquinha!
- Mas em
Guerra nas Estrelas eles não usam touquinha. - retruquei.
- Jornada nas estrelas é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar touquinha!
- Mas no filme
Contato, baseado na obra do cientista
Carl Sagan, eles não usam touquinha. - expliquei.
- Contato é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar touquinha!
- Mas em
Esquadrão Atari eles não usam touquinha. - lembrei.
- Esquadrão Atari é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar toquinha!
Como o palavrão é o argumento dos que estão errados, ele saiu batendo o pezinho e prometendo que ia mostrar como se fazia:
- Vou escrever um livro em que os astronautas usam touquinha e que os
políticos não usam óculos. Vai ser um sucesso porque todo mundo quer ler
histórias com astronautas de touquinha!
Pois é... dizem até que ele escreveu tal livro com o astronauta de touquinha... quanto ao sucesso...
A grande lição é: história em quadrinho não é documentário. Embora os
astronautas da NASA usem toucas durante as missões, a maioria das
pessoas pensa neles sem a tal touquinha pela simples razão de que,
normalmente, quando aparecem em público, estão sem touquinha.
Assim, para o leitor normal, um astronauta de touquinha é menos
verossímil que um astronauta sem touquinha. E nos quadrinhos a
verossilhança é mais importante do que o realismo.